terça-feira, março 04, 2008

HÁ DIAS EM QUE ME APETECE MUDAR O MUNDO

Quando era mais novinha, acreditava que, se as pessoas falassem umas com as outras, não haveria nunca razões para não se entenderem. Era isto que a minha mãe me dizia: A falar é que a gente se entende!, encorajando-me a extravasar o que me ia na alma, a verbalizar, mas nunca a falar em vão! A palavra reveste-se de algo de sagrado e mítico - não pode ser desperdiçada assim por dar cá aquela palha. Se vamos falar, que valha a pena e, se vamos discutir, que seja para procurar a verdade das coisas.
E durante muito tempo eu acreditei em tudo isto, mantendo uma fé inabalável no poder curativo da palavra. Chegava até a dar por mim de boca aberta, perplexa perante o ecrã da televisão, quando o senhor de fato que nos mostrava o mundo nos comunicava que, algures num continente, havia povos que não encontravam o caminho entre eles, não se conseguiam entender. E de tal forma era a minha incredulidade que tinha em mim a certeza de que se eu fosse lá fazer a ponte entre as duas partes, se eu expusesse e organizasse as ideias e reivindicações de cada um, tudo seria estupidamente simples e todos deixariam escapar um Ah! de grande admiração, só comparável ao velhinho Eureka!.
O que eu só vim a descobrir mais tarde foi que as pessoas não discutem para encontrar a verdade, que os argumentos que escolhem estão, pelo contrário, ao seu próprio serviço, do seu egoísmo e da sua inflexível visão de mundo. Que a palavra é maltratada constantemente em discursos ocos, diálogos que não passam do solilóquios e artifícios publicitários mais ou menos duvidosos. Um dia tropecei numa daquelas frases: Une cruelle aberration fait croire aux hommes que le language est né pour faciliter leurs relations mutuelles (Michel Leiris). Aberração! Senti em mim uma desilusão incomensurável que me desfez por dentro e me abriu em carne viva. Todas as vociferações do mundo me pareceram ruído. Gralhas!! E, então, calei-me!
Acredito, ainda, que as palavras detêm um enorme poder sagrado e mágico. E reconheço o perigo desse poder! Por isso mesmo é que não poderia mais usá-las a não ser com parcimónia, com pezinhos de lã, não vá perder-se o caminho até à palavra. A única. A verdadeira.

Mas, às vezes, sinto saudades da menina pequenina que achava que podia curar todas as feridas. E, então, só às vezes, apetece-me mudar o mundo. E começo a falar.

(texto escrito e publicado em Outubro de 2005)